Top 10 episódios de podcasts brasileiros de 2019

Jessica Almeida
9 min readDec 26, 2019

Uma seleção pessoal e enviesada

Se 2018 foi o “ano do podcast” no Brasil, em 2019 essa mídia começou a abrir, definitivamente, um caminho em direção à popularização. E a profusão de novos programas foi apenas a ponta do iceberg. Plataformas de reprodução e veículos da mídia tradicional fizeram grandes investimentos nessa área, tanto em produções próprias, quanto na divulgação e realização de eventos para discutir o assunto. Não foi à toa que a Maratona Piauí CBN de Podcast — já com duas edições —, o Spotify for Podcasters Summit e o Globo AudioDay foram realizados este ano pela primeira vez.

Apesar disso, houve quem criticasse a qualidade dos programas, dizendo que a produção brasileira ainda é precária e amadora. É claro que se nos compararmos a contextos em que o podcast já é mais consolidado, como o dos Estados Unidos, ainda temos muito a melhorar, sobretudo em termos de linguagem. Apesar disso, muitos bons trabalhos já são feitos por aqui. Acompanho o cenário nacional há algum tempo e este foi um ano em que ouvi coisas especialmente interessantes, então resolvi fazer esta lista com os melhores episódios de 2019, segundo os critérios nada objetivos da minha opinião.

10º Expresso Ilustrada — A história da produtora que virou referência em vídeos de direita no país

Depois do sucesso estrondoso (e merecido) do Presidente da Semana em 2018, a Folha de S.Paulo entrou de cabeça na produção de podcasts, com editoria específica pra isso e tudo. O Café da Manhã é, com razão, a vitrine do jornal, mas em 2019 foram lançadas várias frentes de trabalho. Do que é feito lá, o Expresso Ilustrada está entre os que mais gosto. Acho a escolha do formato muito acertada: uma conversa informal, mas bem roteirizada. E as ótimas pautas (que podem ser ou não desdobramentos de reportagens) em geral refletem o que eu gostaria de ouvir num podcast de cultura. O episódio que escolhi é sobre a produtora de direita Brasil Paralelo, que eu sequer sabia que existia, mas tem milhões de reproduções em seus vídeos. Na guerra cultural que se instaurou no Brasil — e no mundo — , ela atua para “combater o comunismo” investindo em revisionismo histórico.

9º É Nóia Minha? — Como se informar sem enlouquecer?

O É Nóia Minha, da Camila Fremder, é um mesa redonda muito redondinho (dsclp). Tem uma proposta ampla, mas bem definida — falar das maluquices que passam pela cabeça de todo mundo — e a conversa é conduzida segundo tópicos predeterminados, com duração de cerca de uma hora. Talvez eu esteja sendo um pouco corporativista aqui, mas escolhi recomendar o episódio sobre relação com as notícias em tempos de redes sociais e smartphones, com participação de duas jornalistas: a ex-BuzzFeed Manuela Barem e a Magê Flores, do Café da Manhã. Elas falam sobre bastidores e engrenagens do jornalismo, discutem a função do podcast num mundo saturado de informação, falam de representatividade feminina no universo das notícias, entre outros assuntos. E pra quem gosta do matinal da Folha, ainda é uma ótima oportunidade para ouvir a apresentadora numa conversa mais descontraída.

8º Histórias que Ninguém te Conta — episódio #3, Um corpo que cai

Esse é o primeiro de vários podcasts da lista que trazem histórias humanas apresentadas em formato narrativo. O Histórias que Ninguém te Conta, da Agência Pública, é um desdobramento do Museu do Ontem, aplicativo que mistura jornalismo e gamificação ao percorrer a Zona Portuária do Rio de Janeiro — espaço crucial para a história do país sob diferentes aspectos — e desvelar fantasmas escondidos no passado do Brasil. Todos os quatro episódios publicados até agora são excelentes, mas escolhi colocar aqui o terceiro. Ele começa com a busca das repórteres por um determinado personagem, e a partir dela vai apresentando casos de torturados na ditadura militar e de familiares de pessoas cuja morte nesse período nunca foi reconhecida como responsabilidade do Estado. Ao acompanhar a jornada de Mariana Simões e Natalia Viana, o ouvinte tem a sensação de ir descobrindo novas pistas junto com elas, um recurso narrativo que torna a experiência da escuta especialmente instigante.

7º Bobagens Imperdíveis — episódio #8, O idioma da persuasão

Aline Valek é uma escritora e ilustradora muito talentosa cujo trabalho eu acompanho há algum tempo. O Bobagens Imperdíveis é o que ela chama de seu “selo de histórias curtas”, que já existia nos formatos de newsletter, livro e zine, e em 2019 foi lançado como podcast. A proposta é contar histórias inspiradoras sem muita delonga, por isso os episódios têm por volta de 15 a 20 minutos. Nesse curto intervalo, ela apresenta o tema e se aprofunda nele com reflexões e uso de recursos sonoros. Uma escuta leve, mas também muito informativa. O que eu escolhi pra colocar aqui fala sobre a linguagem da propaganda. Entre outras referências, traz histórias que vão da Antiguidade na China ao caso de uma marca de eliminador de odores que reverteu o fracasso nas vendas sem mexer no produto, apenas readequando seu discurso publicitário.

6º Rádio Escafandro — episódio #13, Brumadinho em dois atos

Eu não participei diretamente da cobertura do rompimento da barragem da mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, no início deste ano, a não ser por um domingo em que estava de plantão e fui enviada à cidade. Mas, de dentro da redação do jornal O Tempo, semana após semana, eu pude acompanhar de perto a dimensão do estrago provocado por essa catástrofe na vida de tanta gente. Também vi quão desgastante foi o processo para os meus colegas que reportavam notícias sobre esse assunto diariamente. No episódio recomendado aqui, o Rádio Escafandro — cuja proposta é trazer audiorreportagens imersivas a cada 15 dias — acrescentou algumas camadas de profundidade a essa experiência. A repórter e apresentadora da BandNews FM Gabriela Mayer esteve em Brumadinho nos dias seguintes à tragédia e também seis meses depois, e é o fio condutor da narrativa. Sua conversa com o apresentador Tomás Chiaverini e os trechos de entrevistas realizadas por ela nos dois momentos compõem o programa, que torna muito palpável o impacto de um acontecimento dessa magnitude na subjetividade das pessoas, sejam vítimas, parentes, bombeiros ou jornalistas.

5º G1 Ouviu — episódio #62, Como a briga Anitta x Ludmilla revela disputa maior por autoria de hits

O G1 Ouviu já era legal quando trazia os espirituosos Braulio Lorentz e Rodrigo Ortega comentando os lançamentos da semana de artistas da música pop, mas ganhou contornos mais complexos quando virou um “guia de novidades musicais”, num sentido mais amplo. Dos episódios sobre o Rock in Rio em diante, o programa passou a discutir a relação da música com outros temas em alta no momento, sejam eles diretamente relacionados ao universo musical ou não. Mantendo a duração de cerca de 20 minutos, ficou mais atraente. O episódio que escolhi contextualiza uma grande treta da internet e da música brasileira em 2019, ao mesmo tempo em que deixa mais visíveis algumas nuances da indústria musical contemporânea, como o papel do produtor na concepção e identidade de uma canção.

4º 37 Graus — Pipoca, pamonha e canjica

O 37 Graus é, pra mim, um dos projetos independentes mais bem acabados sendo feitos hoje no Brasil. Tem uma identidade visual caprichada, site, blog e newsletter. Sem contar os programas em si, de um esmero profundo em todos os aspectos. Não por acaso, tem o apoio do Instituto Serrapilheira, de fomento à pesquisa e divulgação científica, e foi o único trabalho brasileiro selecionado para o Google PRX Podcast Creator Program. Além disso, está se desdobrando em uma produtora, a Lab37. Feito por Sarah Azoubel e Bia Guimarães, mostra (sim, porque a construção sonora é toda feita para que o ouvinte enxergue) as transformações na paisagem e na cultura em diferentes partes do país. No último episódio da segunda temporada, elas demonstram a riqueza da nossa cultura alimentar ao investigarem a ancestralidade do milho, suas raízes indígenas e relação com a essência da identidade brasileira.

3º Café da Manhã — A jovem sueca que incomodou Bolsonaro e Trump

Pelo que escrevi até aqui, já deve ter dado pra notar que o Café da Manhã é meu favorito entre os herdeiros brasileiros do The Daily, projeto de 2017 do New York Times que estabeleceu um modelo de podcast diário de notícias replicado no mundo todo. Ainda que eu também goste muito d’O Assunto, da Renata Lo Prete, o Café combina, de forma equilibrada, tudo o que eu considero fundamental: tópicos relevantes, discussão aprofundada, roteiro estruturado, competência e carisma dos apresentadores (Rodrigo Vizeu e Magê Flores), entrevistados articulados e com domínio da pauta e uma edição impecável. Sério, eu desafio quem quer que seja a encontrar uma gagueira ou fala titubeada em qualquer um dos mais de 250 episódios publicados, ou mesmo algum sinal de que foram cortadas. Isso é difícil demais! Mas não é só isso, ele também é o mais oportuno. Algumas vezes ao longo do ano, deu pra notar que episódios prontos foram descartados ou adiados, em favor da produção de outro que contemplasse melhor as reviravoltas do noticiário. Inclusive aos fins de semana, com equipe reduzida, como quando a menina Ágatha Félix foi morta, na noite de uma sexta, com repercussão no sábado. Os outros três desse modelo — Estadão Notícias, O Assunto e Ao Ponto, d’O Globo — deram o caso na terça, afinal produzir um podcast substancial dá trabalho e leva tempo, mesmo com muita gente envolvida. Mas o Café deu na segunda. Enfim, resolvi recomendar aqui a última vez que acertaram em cheio na escolha da pauta, quando falaram da Greta Thunberg exatamente no dia em que ela foi anunciada como pessoa do ano pela revista Time.

2º Negra Voz — episódio #3, A história da 1ª chef de cozinha do Brasil, Benê Ricardo, e uma entrevista com a chef Dandara Batista

O Negra Voz, do jornal O Globo, pra mim é o Presidente da Semana de 2019, na medida em que o considero o trabalho mais importante do ano, que deveria ser passado nas escolas. Tiago Rogero apresenta personalidades negras do passado e do presente do Brasil, prestando reverência a essas pessoas, que muitas vezes não têm o reconhecimento merecido. Ao fazer isso, ele escancara como o racismo transforma suas trajetórias em um campo minado, a ponto de a resiliência ser uma característica tão fundamental quanto o talento para que alcancem o sucesso. Ouvir os episódios me causou um misto de admiração, compaixão e revolta, além de me fazer enxergar de forma muito evidente o quanto sou privilegiada pelo fato de ser branca. Sem falar na qualidade da produção, do roteiro, da sonorização — com trilha original — e da narração. Recomendo todos os cinco episódios disponíveis, mas escolhi colocar aqui o que fala da primeira mulher a se tornar chef de cozinha no Brasil, Benê Ricardo. Não a conhecia e fiquei encantada por sua história, que envolve orfandade na infância, exploração, mudança pra Alemanha, concurso de receitas, sabotagem e outras reviravoltas, nem sempre positivas. O episódio também apresenta Dandara Batista, dona do restaurante Afro Gourmet, no Rio de Janeiro, especializado em culinária de países africanos.

1º Respondendo em Voz Alta — episódio #17, Não é difícil calcular a idade de Jesus

Como jornalista, eu estaria descumprindo minhas atribuições profissionais se não colocasse o Respondendo em Voz Alta no primeiro lugar da lista. O conceito é literalmente uma mulher respondendo perguntas que lhe são enviadas por escrito ou por áudio, mas essa descrição passa muito longe de dar conta da genialidade do que DJ Laurinha Lero faz nos 30 e poucos minutos de seu programa — e olha que eu sou pelo fim do adjetivo genial. Entre as várias razões que eu poderia escolher para explicar o quanto é maravilhoso, vou enumerar apenas quatro: 1) Laurinha faz humor universal, mas de uma perspectiva feminina. Isso infelizmente ainda é algo raro, afinal universal é sempre o homem (de preferência branco, hétero e cis); 2) o encadeamento dos assuntos e as transições entre eles são absolutamente harmoniosos. Para quem trabalha com escrita (mas não só), dá muito gosto de ouvir; 3) a sinergia entre a apresentadora e a audiência que envia perguntas é das mais profundas. Claro que provavelmente tem uma boa dose de curadoria nisso, mas é incrível como eles levantam a bola pra ela cortar; 4) e, como disse um amigo meu, é impressionante a replayability dos episódios. Não encontrei tradução adequada do termo para o português, mas é algo como a capacidade de ser ouvido inúmeras vezes sem deixar de se tornar interessante. Pelo contrário. Comecei a acompanhar quando a frequência já estava ali em cerca de um episódio por mês, por isso ouço cada um uma média de cinco vezes, e a maioria vai ficando melhor a cada ouvida. Pra não me delongar mais nesse textão, recomendo aqui o episódio que abre com um monólogo sobre setembro amarelo que pra mim é pura arte. É isso.

P.S.: Quero só reforçar que esta lista não se pretende representativa de nada a não ser do meu gosto, e dizer que tenho consciência de que muitos outros podcasts dignos nota foram feitos este ano, no Brasil.

P.S. 2: Fazer a lista me fez perceber que ouvi pouca coisa feita fora do eixo Rio-São Paulo e por pessoas não-brancas em 2019. Fica como resolução de ano novo a tarefa de mudar isso. Aceito recomendações!

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